O Papado de Francisco - O que os 'radtrads' não querem que você saiba
- Frederic Montanha
- 23 de fev.
- 27 min de leitura

Nessa época de meados dos anos 20, é um lugar comum da grande mídia anunciar que o mundo vive um contexto de anormalidade e de "regressão histórica", marcantemente após a ascensão de movimentos críticos ao pensamento liberal na década passada. Esse momento de reversão histórica teria seus marcos em 2015 e 2016, com o surgimento do trumpismo e as vitórias eurocéticas na Europa, cujo grande ápice está no Brexit. Há uma narrativa muito solidificada que aponta para o mundo pós-soviético, o mundo de hegemonia do eixo UE-EUA-OTAN nas relações internacionais como uma época em que as coisas estavam "progredindo". Percebe-se que é um ponto de vista estritamente progressista, portanto. O mundo estava em franca globalização e as redes de poder capitaneadas pelo liberalismo internacionalista estavam alcançando plenamente seus objetivos na construção da "sociedade aberta", o pseudônimo da tirania globalista sob uma sociedade massificada e totalmente niilista.
As classes falantes hoje, em sua maioria são compostas pelas viúvas do 'fim da história'.
Esse prólogo é importante, pois o ano da eleição de Francisco foi 2013. Era o ápice dessa hegemonia liberal-globalista sobre o mundo. Simbolizado pelo governo Obama, a aceleração dos descalabros migratórios suicidas na Europa, a vitalidade de um progressismo de esquerda no mundo latino, a força ainda preponderante dos meios de comunicação de massas. Eu não me sinto desconfortável em dizer, que rumávamos para 1984, para uma distopia abjeta. Ou talvez... para a criação de uma psicologia coletiva que tornasse realidade a nível hemisférico, a história de The Wicker Man, o filme de 1973 com Christopher Lee (o Saruman), onde o cristão termina queimado vivo num ritual porque se tornou o 'outro', totalmente estranho e herético para a 'nova civilização utópica'.
Quando vemos as recentes perseguições aos cristãos na Inglaterra, na Escócia e na Irlanda, denunciadas em Munich por JD Vance, percebe-se o quanto esse cenário é realista.
2013 era, pois, época em que governava plenamente o 'espírito do tempo' anticristão. A Igreja se via cercada por todos os lados e as campanhas midiáticas anticatólicas eram uma rotina em todo Ocidente. Francisco sobe à Cátedra de Pedro com o desafio de enfrentar essa hegemonia satânica e em meio a duas desssas campanhas... os casos de corrupção financeira no Vaticano, cuja principal ponta-de-lança foram os 'Vatileaks' e as acusações de abusos no clero.
O duro enfrentamento com as questões mais delicadas no governo da Igreja
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco se deparou com desafios internos que demandavam respostas firmes e preocupavam os católicos de apropriada consciência. Entre os mais sensíveis, destacam-se os escândalos financeiros no Banco do Vaticano e as contínuas acusações de abusos sexuais no clero. Seu governo tem sido marcado por uma reforma profunda e a criação de mecanismos de transparência.
A Corrupção no Banco do Vaticano
O Instituto para as Obras de Religião (IOR), conhecido como Banco do Vaticano, se viu envolvido em polêmicas ligadas a corrupção, lavagem de dinheiro e falta de transparência. Francisco iniciou uma ampla reforma para limpar as finanças do Vaticano, nomeando especialistas externos e estabelecendo mecanismos de auditoria.
Uma das suas decisões mais impactantes foi a criação da Secretaria para a Economia, liderada inicialmente pelo cardeal George Pell. Esse órgão teve como objetivo centralizar e fiscalizar as contas da Cúria Romana. No entanto, Pell enfrentou oposição interna e acabou afastado devido a polêmicas pessoais.
Em 2020, um grande escândalo veio à tona com a investigação sobre o desvio de fundos da Santa Sé para a compra de um imóvel de luxo em Londres, que resultou na condenação e prisão do cardeal Angelo Becciu pelo Estado do Vaticano, cardeal que era até então uma figura de confiança. Esse episódio demonstrou o empenho de Francisco em expor e combater as irregularidades.
O Combate aos Abusos no Clero
Outro grande desafio para Francisco tem sido lidar com os casos de abuso sexual cometidos por membros do clero. Escândalos anteriores já haviam atraído extensa midiatização contra a Igreja, mas o Papa buscou implementar medidas mais rigorosas.
Em 2019, ele convocou uma histórica reunião com bispos do mundo inteiro para tratar do tema e, posteriormente, introduziu uma legislação mais severa para punir clérigos envolvidos em casos de abuso, incluindo a obrigatoriedade de denuncia por parte dos membros da Igreja. Além disso, removeu da hierarquia eclesiástica nomes de alta relevância, como o ex-cardeal Theodore McCarrick, acusado de abusos sistemáticos.
Sua amizade e apoio aos líderes conservadores na Europa

É falsa a reputação fabricada pela mídia do Papa Francisco como um progressista político. Como vimos, em meio à hegemonia liberal no mundo ocidental, ele manteve um distanciamento de qualquer questão política em um primeiro momento. Criticava os populismos de todas as matizes, as ditaduras e ideologias que a elas conduzem. Criticou o marxismo e o declarou falso. Evidentemente, não poderia compactuar com certas direitas que surgiam nas Américas, superficiais e totalmente desprovidas de qualquer noção. Talvez por isso tenha se tornado objeto dos grunhidos anticomunistas de politiqueiros identificados com uma visão obtusa de capitalismo e Ocidente geopolítico. No entanto, Francisco demonstrou aproximação com alguns líderes conservadores na Europa. Entre eles, Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, e os conservadores poloneses do partido Lei e Justiça (PiS).
Francisco e Meloni compartilharam preocupações sobre questões como a crise migratória e a proteção da identidade cultural da Europa, ainda que com nuances distintas. Ele na verdade desfruta de uma relação bastante próxima com Giorgia Meloni, líder conservadora, que nos anos 90 demonstrava admiração por Corneliu Codreanu, assim chamada de extrema-direita pela mesma mídia mentirosa de esquerda.
No ano passado, por exemplo, Meloni e o Papa partilharam um palco num grande evento romano sobre a família, onde Francisco essencialmente aprovou os esforços do governo de Meloni para aumentar a taxa de fertilidade em declínio na Itália.
Em abril, os dois fizeram uma parceria diplomática na cúpula do G7, com base no “Apelo de Roma pela Ética da IA” de 2020 do Vaticano.
“Estou convencido de que a presença de Sua Santidade dará uma contribuição decisiva para a definição de um quadro regulamentar, ético e cultural para a inteligência artificial”, afirmou Meloni, coplementando que Francisco “traz prestígio à nossa nação e a todo o Grupo dos Sete”.
Também em abril, o Vaticano divulgou o documento Dignitas Infinita sobre uma vasta gama de questões éticas, mas na Itália a maioria das manchetes centrou-se nas suas críticas ao aborto e à maternidade de substituição, as chamadas barrigas de aluguel. A oposição a essas práticas são pautas centrais da agenda interna de Meloni, o que levou um jornal italiano a publicar a manchete “Bergoglio vota em Meloni”.
Por sua vez, Meloni sempre busca visitar e tirar fotos com Francisco, que sempre parece feliz nestes momentos. Os dois encontraram-se já diversas vezes em audiências, missas e ocasiões especiais.
Com Orbán, a relação é mais complexa, pois o primeiro-ministro húngaro frequentemente cita valores cristãos para justificar políticas de controle de imigração e proteção da família tradicional.
Na Polônia, o apoio aos conservadores do PiS tem se manifestado na defesa da soberania nacional e da preservação da fé católica como um pilar essencial da sociedade polonesa. O Papa tem enfatizado a importância da identidade cristã na política europeia, mesmo que mantenha uma abordagem diplomática ao lidar com diferentes correntes políticas.
Essa dinâmica reforça a capacidade de Francisco de dialogar com diferentes grupos dentro e fora da Igreja, buscando sempre equilibrar princípios doutrinários com a realidade política global.

O presidente polonês Andrzej Duda discute a Promoção da Família com o Papa Francisco
Por exemplo, em 2021, uma comitiva diplomática da Polônia encontrou-se em Roma com o Papa Francisco e vários cardeais. Foram discutidos alguns temas de interesse mútuo relacionados com a missão da Igreja, incluindo a promoção da família e a educação dos jovens, onde o Papa expressou apoio às medidas de defesa das instituições tradicionais. Por fim, as atenções se voltaram para algumas questões internacionais, como a emergência sanitária, a situação regional e a segurança.
Segundo Duda, “O Santo Padre, Francisco, destacou que nos últimos anos temos conduzido uma política muito eficaz para a família. Ele me agradeceu muito por isso. Fiquei profundamente comovido com esses agradecimentos.”
“Ele mencionou todos os programas que lançamos e que nos preocupamos com as famílias que criam os filhos. Fico feliz que o Santo Padre saiba disso, que a Santa Sé saiba disso.”
O apoio público do Papa veio em um momento em que a Polônia era atacada pela mídia internacional globalista que espalha a notícia falsa de que existem zonas livres de LGBTs no país, entre outros mimimis politicamente corretos.

Na Hungria, proximidade com o príncipe-embaixador Eduard Von Habsburg
Uma das primeiras ações do Arquiduque foi uma audiência com o Papa Francisco, onde ele expôs a visão húngara sobre a problemática da imigração e assegurou o comprometimento do governo com a preservação da identidade européia cristã. Ele têm realizado encontros com os aliados de Budapeste em Roma, principalmente os poloneses e o embaixador austríaco que é cunhado de sua esposa, Marie Therese von Gudenus. Além disso vêm a público para defender as medidas pró-família de Orbán que incluem a oposição ao aborto e o estímulo à natalidade dos europeus.

Seus esforços contra o aborto
O Papa Francisco tem se posicionado firmemente contra o aborto, reforçando a visão da Igreja de que a vida deve ser protegida desde a concepção. Ele frequentemente condena a prática em discursos e encíclicas, chamando-a pelo devido nome de "assassinato" e criticando a cultura que relativiza o valor da vida humana.
Nos Estados Unidos, o lobby católico desempenhou um papel fundamental na decisão da Suprema Corte de reverter o caso Roe v. Wade, que havia permitido vergonhosamente o aborto naquele país. O episcopado e os grupos católicos pró-vida intensificaram suas campanhas e pressionaram legisladores para apoiar nomeações de juízes contrários à legalização do aborto. A decisão da Corte em 2022 foi recebida com entusiasmo pelo Vaticano, que viu nela uma vitória dos valores cristãos na esfera pública.
Além disso, Francisco tem reforçado a importância do apoio às mães em situações vulneráveis, incentivando políticas sociais que ofereçam alternativas ao aborto, como programas de adoção e suporte financeiro para famílias de baixa renda. Sua abordagem busca também criar soluções concretas para as dificuldades enfrentadas pelas mulheres grávidas.
Seu compromisso com essa questão coloca Francisco em sintonia com líderes religiosos e políticos conservadores que compartilham da mesma visão pró-vida, fortalecendo ainda mais a presença da Igreja nas discussões sobre bioética e direitos humanos em nível global.

A Política Conciliatória e a Visão da 'Igreja como um Hospital de Campanha'
Uma das marcas do pontificado de Francisco tem sido sua política conciliatória dentro da Igreja e no cenário global.
O Papa utiliza a metáfora da "Igreja como um hospital de campanha" para ilustrar sua visão pastoral. Para Francisco, a Igreja deve estar presente nas realidades mais difíceis da sociedade, curando feridas e evangelizando da forma mais missionária possível, seguindo o exemplo de Cristo. Essa abordagem também responde às pressões culturais do laicismo e dos mecanismos mais ardilosos de propaganda contra a Igreja no Ocidente. É literalmente encurralar as vozes tão fortes e ressonantes naquela época de hegemonia e 'fim da história', que acusavam a Igreja em tantos frontes. Providencialmente, Francisco salvaguarda uma visão pastoral que busca dialogar com as novas gerações, tão distantes e os povos, em geral, tão afundados em apostasia. Os resultados dessa abordagem serão ainda matéria de análise para os anos futuros.
A visão social de Francisco enfatiza constantemente a necessidade de uma vida cristã integral, baseada no compromisso com a comunidade e no afastamento de uma espiritualidade individualista. Para ele, a fé não pode ser reduzida a um relacionamento abstratamente privado com Deus, mas deve se manifestar em ações concretas dentro da Igreja e da sociedade.
Nesse sentido, Francisco incentiva uma vivência cristã ativa nas paróquias, onde os fiéis encontram um espaço de acolhimento, comunhão plena com a Igreja e vivência da realidade espiritual. Ele critica duramente o que chama de "espiritualidade de bem-estar", que centraliza o homem, busca apenas conforto pessoal sem um verdadeiro compromisso com os outros. Em diversas ocasiões, o Papa destacou a necessidade da vida em comunidades vivas, firmes na missão da Igreja, atentas ao princípio da subsidiariedade e às necessidades de todos.
Esse chamado se alinha com sua visão de Igreja como um "hospital de campanha", onde a preocupação central deve ser a cura das feridas espirituais e sociais da humanidade. Francisco insiste que a fé deve levar ao engajamento social e à defesa dos mais pobres, reforçando que a missão cristã não pode ser vivida isoladamente, mas sempre em comunhão.
Ao combater a "espiritualidade individualista", Francisco reforça a centralidade da Eucaristia e da vivência comunitária como pilares da fé. Ele encoraja os cristãos a saírem de si mesmos e se envolverem ativamente na vida da Igreja e no serviço ao próximo, promovendo uma espiritualidade que una contemplação e ação.
O Papa Francisco realizou uma interessante alocução aos jesuítas belgas: "a cultura está paganizada. Precisamos confrontar diversas formas de paganismo."
Estive em Luxemburgo apenas por um dia e é claro que não se consegue compreender um país num dia! Mas foi uma boa experiência para mim. Já estive na Bélgica antes, como já lhe contei. Mas, ao final deste encontro, peço-lhes, por favor, que não percam a força evangelizadora neste país. Por trás da longa história cristã, hoje pode-se esconder uma certa atmosfera “pagã”, digamos assim. Não quero ser mal interpretado, mas o risco hoje é que a cultura aqui seja um pouco pagã. A vossa força está nas pequenas comunidades católicas, que não são de forma alguma lentas: considero-as missionárias e devem ser ajudadas.
A secularização é um fenômeno complexo. Percebo que às vezes temos que enfrentar formas de paganismo. Não precisamos de uma estátua de um deus pagão para falar de paganismo: o próprio ambiente, o ar que respiramos é um deus pagão gasoso! E devemos pregar a esta cultura em termos de testemunho, serviço e fé. E desde dentro devemos fazê-lo com oração. Não há necessidade de pensar em coisas muito sofisticadas. Pense em São Paulo em Atenas. As coisas correram mal para ele porque ele seguiu um caminho que não era o seu naquele momento. Eu vejo desta forma. Precisamos estar abertos, ao diálogo, e no diálogo para ajudar com simplicidade. O que torna o diálogo fecundo é o serviço.
A Questão da Liturgia
O Papa criticou as “monstruosas deformações” da liturgia:
"Quando há conflito, a liturgia é sempre maltratada. Na América Latina, há trinta anos, ocorreram monstruosas deformações litúrgicas."
Francisco tem criticado tanto a dessacralização da liturgia quanto o que considera uma tentativa igualmente danosa de priorizar as formas sobre o significado.
Segundo o portal Aleteia: "Ainda durante o encontro com os jesuítas, conforme relatado pela Civiltà Cattolica, Francisco falou das suas medidas a respeito":
"Minha ação neste campo tentou seguir a linha adotada por João Paulo II e Bento XVI, que haviam permitido o rito antigo e haviam solicitado uma verificação posterior. A verificação mais recente deixou claro que havia uma necessidade de disciplinar a questão e evitar que ela fosse um fato de moda, mas que permanecesse uma questão pastoral".
Muito mais do que declarações de natureza efêmera na mídia e em situações informais, a face de um pontificado se demonstra por suas encíclicas e diretrizes programáticas que são articuladas por escrito. Vejamos como foram as encíclicas de Francisco até aqui.
Um olhar para o Oriente: Reunificação no horizonte...

O Papa Francisco tem demonstrado um compromisso sólido e constante em promover o diálogo do verdadeiro ecumenismo que é cristão e busca a unidade em Cristo, com as Igrejas Ortodoxas Orientais. Este esforço busca superar os séculos de divisão entre o Ocidente e o Oriente cristão e parece se consolidar como um dos principais legados do Papa para o futuro. A ruptura formal, que aconteceu no Grande Cisma de 1054, ainda reverbera em muitos aspectos da vida eclesial, mas Francisco tem buscado construir pontes, focando na busca pela reunificação e no fortalecimento das relações entre as tradições ocidental e oriental.
Ciente das profundas raízes históricas e teológicas da divisão entre as Igrejas Ocidental e Oriental, tem se dedicado a um esforço contínuo de aproximação e reconciliação. Francisco fez da busca pela unidade com as Igrejas Ortodoxas Orientais uma de suas prioridades, oculta pelo silêncio da mídia e pela ignorância de muitos.
Um dos marcos dessa aproximação foi sua histórica visita ao Patriarca Bartolomeu I de Constantinopla em 2014, no contexto das celebrações do Dia de São André, o patrono da Igreja Ortodoxa. O encontro entre os dois líderes foi simbólico, pois representou uma recuperação do diálogo interrompido entre Roma e Constantinopla desde o cisma medieval. Essa visita foi acompanhada de gestos de reconciliação, como o reconhecimento mútuo das respectivas autoridades eclesiásticas, que já haviam sido formalmente estabelecidas na década de 1960, mas que careciam de profundidade em termos de relacionamento real e colaborativo.
Durante a visita, o Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu I expressaram um desejo comum de superar os obstáculos históricos, teológicos e políticos que ainda separam as duas tradições cristãs. Essa visita também foi um marco na continuidade das iniciativas do Vaticano para reforçar as relações com o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, que é considerado por muitos ortodoxos como o "primeiro entre iguais" no mundo ortodoxo, dada sua posição histórica e simbólica.
Outro momento decisivo no esforço de aproximação de Francisco com as Igrejas Ortodoxas Orientais ocorreu em 2016, quando o Papa se encontrou com o Patriarca Kirill de Moscou, líder da Igreja Ortodoxa Russa. Este foi o primeiro encontro entre um papa e um patriarca ortodoxo russo em mais de mil anos, marcando uma ocasião histórica após séculos de desconfiança e separação entre Roma e Moscou. O encontro foi motivado pelo desejo comum de combater a secularização hostil, promover a unidade cristã e reforçar a solidariedade na defesa dos cristãos perseguidos no mundo.
Embora a reunião tenha sido significativa em termos de simbolismo, ela também representou um compromisso real de colaboração entre as duas Igrejas, especialmente em questões como a liberdade e o direito dos cristãos de viver sua fé sem perseguições. O Papa Francisco e o Patriarca Kirill assinaram uma declaração conjunta, condenando a perseguição religiosa e expressando sua preocupação com a situação dos cristãos martirizados pelo ISIS e pela desestabilização do Oriente Médio.
Interessante legado do último Concílio, o documento Unitatis Redintegratio abordou a necessidade de promover a unidade dos cristãos e encorajou um renovado olhar para o Oriente. Surgem vozes importantes em ambos os lados por discussões teológicas que solucionem o cisma, como a do Cardeal Schönborn e setores ortodoxos gregos.
O compromisso de Francisco em trabalhar com humildade e respeito pelas tradições orientais oferece uma base sólida para um diálogo contínuo. A esperança é que, ao longo do tempo, as ações concretas de colaboração, como a ajuda mútua em questões sociais e a compreensão teológica mais profunda, possam pavimentar o caminho para uma reconciliação mais plena como uma tarefa essencial para a Igreja Católica.
Fratelli Tutti - Sua Importância Histórica e Filosófica
Publicada em 2020, é uma encíclica social de grande valor, incluindo a abordagem do globalismo como um inimigo comum da humanidade, o que é muitíssimo interessante. Abaixo, separei diversos trechos que revelam a profundidade do ministério pastoral do Papa:
«Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes económicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos». Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».
Pelo mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo. Neste contexto, colocava-se um conselho que dei aos jovens: «Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos. Assim procedem as ideologias de variadas cores, que destroem (ou desconstroem) tudo o que for diferente, podendo assim reinar sem oposições. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu».
São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos de que «os povos que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência imposta, imperdoável negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, económica e política». Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação.
"Temos de reconhecer que, entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.
Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria. Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora, mas de facto são desprezados pela miopia dos racionalismos."
O descarte mundial
18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis».
19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais. Assim, «objeto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos». Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não pode alcançar.
21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas». Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto.
51. Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura. Esta nostalgia superficial e triste, que induz a copiar e comprar em vez de criar, gera uma baixa autoestima nacional. Nos setores acomodados de muitos países pobres e às vezes naqueles que conseguiram sair da pobreza, nota-se a incapacidade de aceitar caraterísticas e processos próprios, caindo num desprezo da própria identidade cultural como se fosse a causa de todos os seus males.
52. Uma maneira fácil de dominar alguém é destruir-lhe a autoestima. Por detrás destas tendências que visam uniformizar o mundo, afloram interesses de poder que se aproveitam da baixa autoestima, ao mesmo tempo que, através dos media e das redes, procuram criar uma nova cultura ao serviço dos mais poderosos. Disto tiram vantagem o oportunismo da especulação financeira e a exploração, onde aqueles que sempre ficam a perder são os pobres. Por outro lado, ignorar a cultura dum povo faz com que muitos líderes políticos não sejam capazes de promover um projeto eficaz que possa ser livremente assumido e sustentado ao longo do tempo.
53. Esquece-se de que «não há alienação pior do que experimentar que não se tem raízes, não se pertence a ninguém. Uma terra será fecunda, um povo dará frutos e será capaz de gerar o amanhã apenas na medida em que dá vida a relações de pertença entre os seus membros, na medida em que cria laços de integração entre as gerações e as diferentes comunidades que o compõem, e ainda na medida em que quebra as espirais que obscurecem os sentidos, afastando-nos sempre uns dos outros».
143. A solução não é uma abertura que renuncie ao próprio tesouro. Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais. Não me encontro com o outro, se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico. Só posso acolher quem é diferente e perceber a sua contribuição original, se estiver firmemente ancorado ao meu povo com a sua cultura. Cada qual ama e cuida, com particular responsabilidade, da sua terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria casa para que não caia, ciente de que não o virão fazer os vizinhos. O próprio bem do mundo requer que cada um proteja e ame a sua própria terra; caso contrário, as consequências do desastre dum país repercutir-se-ão em todo o planeta. Isto baseia-se no sentido positivo do direito de propriedade: guardo e cultivo algo que possuo, a fim de que possa ser uma contribuição para o bem de todos.
A Laudato Si, o verdadeiro significado da Ecologia Integral
Poucas pessoas compreenderam o valor do termo 'integral' aqui. Francisco entra nos grandes debates hodiernos e carrega toda uma dimensão filosófica, transformando-a numa base de cosmovisão tradicional, holística. Essa cosmovisão possui tanto uma dimensão espiritual, claro, como permite responder às questões sociais de acordo com o acumulado teórico da Doutrina Social da Igreja.
Como sabemos, a ecologia é uma pauta conservadora. Ainda que precise ser depurada dos alarmismos climáticos e das agendas ideológicas. É possível tudo examinar e reter o que é bom.

O ser humano pertence a um todo maior, que é complexo, articulado e interdependente.
Na Encíclica Laudato sì (LS), o Papa Francisco usa o termo “ecologia” não no significado genérico, romântico e superficial, ele foge do conceito comum que trata do “verde”, “meio ambiente” e desenvolve o termo “ecologia integral”, dando um sentido mais amplo, dinâmico e profundo de entendimento. O Papa supera a fragmentação das ciências e assume um paradigma tradicional, trazendo-o ao mundo contemporâneo. Paradigma este que afirma uma visão de tudo como um grande todo com todas as realidades interconectadas, influenciando-se umas às outras. Nesse sentido, o processo de construção do oikos (do grego, casa, morada, ambiente comum) tem como sua força motriz a relação, que permite que “tudo esteja interligado”, ou seja, “tudo está em relação”, “tudo é coligado”, “tudo está conectado”.
A partir do paradigma da ecologia integral, entende-se as dinâmicas sociais e institucionais em todos os níveis como afirma o Papa: “Se tudo está em relação, também o estado de saúde das instituições de uma sociedade comporta consequências para o ambiente e para a qualidade da vida humana […] Em tal sentido, a ecologia social é necessariamente institucional e atinge progressivamente diversas dimensões que vão do grupo social primário, a família, até a vida internacional, passando pela comunidade local e a Nação” (LS, 142).
“Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado” (LS, 122). O Papa considera o valor intrínseco de cada ser: “Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. (…) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas” (LS, 69).
É a superação de um conceito reducionista para uma visão global da vida. O próprio desenvolvimento científico, o bem-estar social, a troca de conhecimento, a nova visão do conceito de vida apresentado pelo pensamento filosófico e mesmo teológico, trouxeram muitas contribuições para o entendimento de ecologia como interações existentes entre os diversos organismos vivos, mostrando que o ambiente é um “sistema de relações”, “sistema integrado”. Todos os organismos estão carregados de potencialidades que buscam a sua realização. Como organismos interligados por uma teia de relações, fora desta teia não existe vida.
A Dilexit Nos, coroa de um pontificado

Um documento sobre o Sagrado Coração de Jesus, para um mundo que parece sem coração, assim foi apresentada a Encíclica “Ele nos amou”. Ao final de Audiência Geral, o Papa anunciou que publicaria um texto magisterial sobre “esse culto carregado de beleza espiritual”, para que ilumine o caminho de renovação da Igreja e da humanidade. Para meditar sobre os aspectos “do amor do Senhor que podem iluminar o caminho da renovação eclesial; mas também dizer algo significativo a um mundo que parece ter perdido o coração”.
Relacionado às celebrações para o 350º aniversário da primeira manifestação do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, em 1673, que foram abertas em 27 de dezembro de 2023 e serão encerradas em 27 de junho de 2025.
Uma Encíclica fantástica. Um texto riquíssimo a ser meditado por muito tempo. Abaixo, apresento alguns extratos dos ensinamentos e reflexões propostos pelo Papa:
3. No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração. Assim, desde a antiguidade advertimos a importância de considerar o ser humano não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.
9. Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige. Na sociedade atual, o ser humano «corre o perigo de se desorientar do centro de si mesmo». «O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a sua dimensão racional-tecnológica, ou, ao contrário, a instintiva». Falta o coração.
Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem – o coração – vem de mais longe: encontramo-la já no racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo nas suas diversas formas.
Esse Coração Sagrado é o princípio unificador da realidade, porque «Cristo é o coração do mundo; a sua Páscoa de morte e ressurreição é o cerne da história que, graças a Ele, é história da salvação». Todas as criaturas avançam «juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina». Diante do Coração de Cristo, peço mais uma vez ao Senhor que tenha compaixão desta terra ferida, que Ele quis habitar como um de nós. Que derrame os tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração.
O Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs.
A devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da Pessoa de Jesus. O que contemplamos e adoramos é a Jesus Cristo por inteiro, o Filho de Deus feito homem, representado numa imagem sua em que se destaca o seu coração. Neste caso, o coração de carne é entendido como imagem ou sinal privilegiado do centro mais íntimo do Filho incarnado e do seu amor ao mesmo tempo divino e humano, porque, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, é «o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade»
Alguns dos meus predecessores referiram-se ao Coração de Cristo e, com expressões variadas, convidaram a unir-se a Ele. No final do século XIX, Leão XIII convidava-nos a consagrarmo-nos a Ele e, na sua proposta, unia ao mesmo tempo o apelo à união com Cristo e a admiração perante o esplendor do seu amor infinito. Cerca de trinta anos depois, Pio XI apresentou esta devoção como o resumo da experiência da fé cristã. Além disso, Pio XII sustentou que o culto do Sagrado Coração exprime de forma excelente, como uma síntese sublime, a nossa adoração a Jesus Cristo.
87. Poder-se-ia afirmar que hoje, mais do que o jansenismo, enfrentamos um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus. Acrescenta-se a isso, a multiplicação na sociedade de várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma “espiritualidade sem carne”. Isto é real. No entanto, devo advertir que, no seio da própria Igreja, o nefasto dualismo jansenista renasceu com novos rostos. Ganhou força renovada nas últimas décadas, mas é uma manifestação daquele gnosticismo que já nos primeiros séculos da fé cristã causava dano à espiritualidade e ignorava a verdade da “salvação da carne”. Por isso, dirijo o meu olhar para o Coração de Cristo e convido a renovar esta devoção. Espero que possa ser atrativa também à sensibilidade atual e que nos ajude assim a enfrentar estes velhos e novos dualismos, aos quais oferece uma resposta adequada.
88. Gostaria de acrescentar que o Coração de Cristo nos liberta, ao mesmo tempo, de um outro dualismo: o de comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos. O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado.
89. Estas doenças tão atuais, das quais – se nos deixamos aprisionar – nem sequer sentimos o desejo de ser curados, levam-me a propor a toda a Igreja um novo aprofundamento sobre o amor de Cristo representado no seu santo Coração. Aí encontramos todo o Evangelho, aí está sintetizada a verdade em que acreditamos, aí está tudo o que adoramos e procuramos na fé, aí está o que mais precisamos.
Amoris Laetitia, margem para polêmicas e interpretações equivocadas
A primeira das grandes ondas contra o Papado de Francisco adveio da declaração Amoris Laetitia. Infelizmente, ela parece ter aberto uma margem para interpretações muito disparatadas. No entanto, essas interpretações vieram muito mais da parte de conservadores que já começavam a ensaiar uma verdadeira máquina de polêmicas artificiais, oriundas de círculos obscuros sedevacantistas, do que de progressistas que pudessem fazer mau uso do que estava lá escrito. Um trecho do documento é suficiente para esclarecer qualquer dúvida:
No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».
Mas e as polêmicas?
Quem poderá contra a máquina de desinformação em massa que é a grande mídia? Se o modus operandi da mídia anticristã era atacar Bento XVI como retrógrado e um vilão de feições envelhecidas, com o Papa Francisco, tudo mudou de figura. Quiseram falsificar uma imagem falsa para criar uma verdadeira armadilha aos católicos. O que mais sobram são exemplos de farsas, citações tiradas de contexto ou até falsificadas para imputar ao Papa o véu da heterodoxia. O pior é que os ditos conservadores fazem o jogo revolucionário ao atacar o Papa.
Quem nunca viu alguma tia postando aquela frase falsa de São Pio X para atacar o Papa atual? Ou um tio bolsonarista chamando Francisco de "comunista"? Esses são os mais clássicos e lamentáveis. Há também os mais intelectuais que acusam as 'heresias do Papa', repetindo as mesmas fake news que os tiozões mais grosseiros. E claro, os especialistas que, dentro da mesma histeria, assumiram uma soberba enfadonha e começaram a tratar o Papa com a maior má vontade possível.
Vamos recordar um exemplo, nas palavras do grande Leonardo Oliveira:

É claro que o Papado de Francisco tem os seus 'poréns' em alguns aspectos discursivos e pastorais. Mas isso são questiúnculas que jamais poderiam originar o tipo de bizarrice anticristã que muitos radtrads protagonizam em relação ao Papa e estendem à toda Igreja em um show de falácias e generalizações arbitrárias.
O Fiducia Suplicans foi o ápice da histeria generalizada na chamada "bolha católica" da internet. Podemos conceber que a presença do duvidoso cardeal "Tucho" Fernández tenha sido uma escolha ruim do Papa. Ainda assim, não, o Fiducia Suplicans não permite bênçãos a uniões ilícitas.
Vejo muitos amigos numa mesma posição de entrincheiramento em relação ao pontificado atual, baseados no acúmulo de informações falsas, superestimadas ou má interpretadas.
Por exemplo, o Jubileu esteve aberto para peregrinações populares e ali entra qualquer grupo que quiser fazer o trajeto, incluindo grupos não-católicos, o que é claro, foi motivo para alimentar a histeria. Apesar da nomeação de cardeais duvidosos, ótimos nomes entraram e o colégio cardinalício tem uma maioria ortodoxa.
Não há nenhum problema com o novo pregador da Casa Pontifícia. Saíram fake news bem toscas a respeito dele. Esse caso evidenciou a constatação de malícia na produção de ataques ao Papa e à Igreja.
A declaração em Singapura é problemática, mas por abrir margens para interpretações errôneas. Em si, pode e deve ser interpretada como uma visão antropológica do fenômeno religioso. O próprio Bento XVI disse algo muito semelhante com outras palavras.
Conclusão
O pontificado de Papa Francisco é algo complexo, de uma época complexa, marcado por um enfrentamento decidido contra os desafios internos da Igreja, ao mesmo tempo que se coloca em oposição às pressões de uma sociedade secularizada e anticristã. Seu papel, longe de ser o de um líder passivo, reflete uma tentativa de lançamento das redes de pesca para o tão vazio homem moderno, embora, muitas vezes, essa postura tenha sido distorcida e mal interpretada, especialmente por aqueles que dizem defender a tradição católica, mas desprezam a tradição da sucessão apostólica e da dignidade devida aos príncipes da Igreja.
Em meio às críticas provenientes de diferentes lados — tanto de setores progressistas quanto conservadores — o Papa se mantém firme em seu compromisso com a Igreja como um "hospital de campanha", voltada para a cura das feridas espirituais e sociais da humanidade. Seu cuidado pastoral vai além das divisões ideológicas, buscando uma postura de fé e serviço, propondo um apostolado que realmente seja a vida da Igreja, leigos e clérigos.
Não obstante os momentos de polêmica e controvérsia, como as interpretações de Amoris Laetitia ou as acusações infundadas de heresia, o papado de Francisco demonstra uma busca de política conciliatória, oposição a um liberalismo globalista que busca destruir a identidade religiosa e cultural, além de uma luta em prol da vida humana, especialmente contra o aborto, que colocam-no como uma figura de resistência no tão complicado cenário atual.
As críticas vindas de certos círculos "radtrads" falham em enxergar a profundidade do pontificado de Francisco, reduzindo sua ação a rótulos simplistas e acusações infundadas. Ao invés de focar em disputas superficiais, devemos reconhecer a visão pastoral do Papa, que, apesar de imperfeita em alguns aspectos, busca uma Igreja fiel e missionária no espírito de Cristo perante um mundo cada vez mais hostil. O futuro da Igreja e de sua missão passa por uma restauração da unidade e de nossa capacidade de compreender e apoiar a continuidade da tradição, dispensando lutas internas desnecessárias, pois o espírito de divisão só parte do maligno.

Rezemos pela saúde do nosso Papa e o sucesso de sua missão.
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