Considerações sobre Joseph de Maistre
- Ação Orleanista
- 7 de abr.
- 16 min de leitura
Atualizado: 26 de abr.
Escrito por Duque
“Nós não podíamos o ler sem nos sentir constantemente provocados, bravos, em todas as afirmações de nossa razão” - Charles de Rémusat

I – O pensador, o estadista.
Poucos, de fato, são os autores que realmente gostaríamos de ter conhecido quando mais jovens. Ainda que afirmemos o contrário quando o deslumbramento de um grande livro nos arrebata – e digamos desejar tê-lo lido antes –, é muito provável que, se tivéssemos conhecido a obra “X” ou “Y” mais cedo, não a entenderíamos por completo, tampouco poderíamos absorvê-la com o mesmo rendimento. Escolher determinada leitura exige algumas condições prévias que a experiência julga essenciais, a saber: estar intelectualmente preparado em conhecimento ou maturidade e, ainda antes, ter interesse no livro. Ousaria colocar uma terceira: estar com o espírito alinhado à alma da obra. De nada adiantaria ler o mestre russo Fiodor Dostoiévski quando não se carrega uma angústia existencial quase asfixiante, que pressione as noções edificadoras da consciência entre o instintivamente certo e o moralmente errado (ou vice-versa!); da mesma forma, ainda que hoje não me falte preparo para ler os poetas vanguardistas do último século, eles passam longe do meu interesse.
Desse modo, poucos são os autores que hoje, quando leio, me causam um genuíno arrependimento por não os ter conhecido antes. Acredito honestamente que, salvo raríssimas exceções a sequer vir à mente de imediato, todas as minhas leituras foram bem situadas no tempo e no espaço, e aconteceram em instantes perfeitamente oportunos à minha maturidade intelectual.
Contudo, enquanto os olhos percorrem os volumes enfileirados nas estantes de madeira clara, sinto-me capaz de selecionar dois mestres cujos livros eu certamente recomendaria à minha versão passada, caso pudesse contatá-la de alguma forma além de lembranças incapazes de mudar o fluxo da história. São eles, a saber: Honoré de Balzac e Joseph de Maistre. Sobre o primeiro, mais conhecido, não há muito que se falar no presente texto (vide o título!) que não possa ser deduzido com uma leitura honesta e contextualizada do tesouro literário que nos legou: a “Comédia Humana”. Seria impossível dissertar acerca da obra de monsieur Balzac – composta por mais de noventa livros, entre os quais romances, contos, novelas e tratados de costumes – nas curtas páginas de um ensaio para fins de divulgação filosófica.
O segundo foi um dos que, entre tantos, inspirou o primeiro, ainda que seja injustamente menos conhecido. Nascido na cidade de Chamberry – localizada na parte francófona do extinto Ducado de Saboia – durante a segunda metade do turbulento século XVIII, e primogênito de uma família aristocrática da qual também saíram o escritor Xavier de Maistre (1 Autor do clássico “Voyage autour de ma chambre” (Viagem ao redor do meu quarto). 2 Os Lusíadas, Canto I, 4ª estrofe.) e o padre André-Marie de Maistre, Joseph foi magistrado de formação, conde e senador por méritos próprios, escritor por vocação e um dos principais nomes da filosofia contrarrevolucionária e ultramontana. Após alguns anos na maçonaria, - que posteriormente veio a deixar! - ele atuou em uma Europa cujos olhos estavam cegos pelas ideias disruptivas do “século das luzes”, propagadas por escritores subversivos, poetas impetuosos e déspotas obcecados pela modernização. Ao final desse século, como consequência de inúmeras omissões dos monarcas, os olhos do velho continente assistiram, sádicos e deslumbrados, à Revolução Francesa.
Nunca um ator o representou nas telas do cinema - sequer como figurante! - em algum filme de época, o que considero bastante injusto. O drama vivido pelo conde de Maistre, sendo testemunha ocular do supracitado evento e alvo político das suas forças de agressão, certamente renderia uma película audiovisual incrível. Antes simpático a algumas inovações propostas pela Revolução – como a ideia de “Igualdade civil” contra os privilégios de uma aristocracia da qual ele próprio era parte, chegando a clamar no senado saboiano para que tal igualdade fosse “reconhecida a passos largos” – mudou radicalmente de visão após as tropas revolucionárias invadirem seu país, dando amostras gratuitas da violência canibal reinante nas ruas parisienses. Ocupada a Saboia ao final de 1792, o intelectual sobre quem escrevo refugiou-se com sua família em várias cidades italianas até estabelecer-se na corte russa de São Petersburgo, aonde ficou por quase vinte anos.
Nesse tempo em que viveu na Rússia, de Maistre redigiu o poético “Noitadas de São Petersburgo, diálogos sobre o governo temporal da providência”, considerado por alguns críticos como seu zênite literário. Apesar dos retratos do conde sugerirem uma natureza fechada e um temperamento elitista, pouco encontrei sobre sua vida pessoal além de ter se casado aos trinta e três anos com Françoise-Marguerite de Morand, conhecida à época como “Madame prudência”; sobre sua carreira, sei que exerceu a advocacia por dois anos antes de ingressar na magistratura e, catorze anos depois, ser nomeado senador. Os episódios mais leves na biografia do conde parecem quase todos acompanhados por seu bem-humorado irmão Xavier, como a presença de ambos no primeiro voo por balão de ar quente sob os céus de Chamberry, em 1784.
Com uma pena dotada de “estilo grandíloquo e corrente”, - conforme diria Camões (2 Os Lusíadas, Canto I, 4ª estrofe.) - de Maistre entendeu e delineou a dimensão espiritual das mudanças de seu tempo com uma precisão de invejar os melhores soldados da época, quiçá os melhores atiradores da atualidade. Mesmo entre seus adversários intelectuais, era quase unânime o reconhecimento da elegância ímpar presente em seus escritos, cuja atmosfera grave – pelos aspectos de requiem que a colorem com os tons góticos e sombrios de um Ofício dos Defuntos – descortinou a tempestade que estava para vir com a nova era, inaugurada pela Revolução na França. A profundidade com a qual dissecou espiritualmente esse evento à luz da Teologia histórica foi muito além de seu contemporâneo anglo-irlandês Edmund Burke, cujas “Reflexões”, (3 Reflexões sobre a Revolução na França – Obra máxima do autor.) embora o tenham influenciado até certo ponto, tocam apenas vez ou outra nos aspectos metafísicos da mentalidade revolucionária, e dão muito mais ênfase aos problemas temporais e políticos; tudo isso se desconsiderarmos como o texto convenientemente se omite sobre eventos de natureza revolucionária na própria história britânica, como o protetorado de Cromwell (1653-1660), a Revolução Gloriosa (1688-1689) e a própria guerra de independência das Treze Colônias (1775-1783).
Assim, escrevendo em uma linguagem apreensiva que só perde para a do Apóstolo João quando transcreveu as Revelações (4 Nome técnico para o livro do Apocalipse. *Nota do autor.) de Jesus Cristo em Patmos, esse conde saboiano expôs como ninguém o lado sombrio de um ocorrido que, pretendendo “trazer luzes” sobre tudo que consideravam obscurantista e ultrapassado, varreu séculos de tradições organicamente estabelecidas com a força das tragédias anunciadas ao tocar de cada uma das sete trombetas. (5 Ap 8-11.) Tais blasfêmias contra Deus e Sua obra, proferidas à época por ninguém menos que Voltaire, Denis Diderot, Jean d’Alembert, Claude-Adrien Helvétius e outros escritores idolatrados nas aulas da escola, - mas raramente lidos - só viriam a se repetir nas mesmas proporções dois séculos depois; não ironicamente, por pessoas nascidas no mesmo país.

De fato, a percepção “além-política” sobre a natureza das revoluções; - especialmente a francesa - ou “metapolítica”, expressão que já ouvi sendo usada por alguns analistas, o permitiu antecipar melhor que vários contemporâneos as suas consequências. Não caindo na atitude contraditória de apoiar a subversão dos costumes, a destruição das tradições e a terceirização da moral até o ponto que lhe era conveniente – como alguns liberais o fizeram, e fazem até hoje –, de Maistre não precisou ter o desprazer de lutar contra a besta que ajudou a alimentar, tentando conter seu apetite destrutivo; de ser engolido pela marcha dos acontecimentos que ajudou a guiar, até o momento em que se perde as rédeas e perece no turbilhão. O mesmo não pode ser dito de seus defensores: Robespierre, Danton, Sieyès, Madame de Staël, Pierre Vergniaud e até Henri Benjamin Constant de Rebecque. Um epitáfio muito prudente é atribuído ao penúltimo citado, antes de morrer pelas lâminas da guilhotina:
“A revolução é como Saturno: ela devora seus próprios filhos”
II – Uma proposta em filosofia do direito
Essa parte do ensaio é para você, estudante de direito como um dia eu fui, e por isso vos peço: leiam-na com bastante atenção. Eis que você acabou de entrar em uma faculdade, projetando o seu porvir na advocacia ou na magistratura; contudo, algo incômodo, que você não sabe dizer exatamente o quê, aparenta pairar nas palavras dos professores durante as aulas. Aquela imagem mental revestida de nobreza, que a escola e os filmes nos induzem a formar sobre os profissionais do direito, começou a evaporar! Ao invés de encontrar cavaleiros togados, armados vigorosamente para defender o que é justo e correto, tu provavelmente encontraste pessoas que, salvo raríssimas exceções, lhe lembrarão os sofistas que você estudou durante a escola. Com um denso aparato travestido do mais refinado discurso científico, você terá a sensação que eles fazem tudo para te convencer que criminosos não são criminosos e leis não são leis; a névoa da confusão descerá, e nada vai parecer um norte.
Sim, será desolador. Apesar disso, não desanime! Pois em tempos que a frase “você é estudante/profissional do direito!” deixou de ser uma mera constatação de uma escolha educacional, passando a estar envolta em um frenesi que, quando falada em discussões, pressupõe nossa adesão às leis atualmente em vigor, aos paradigmas que se tornaram mainstream na interpretação do direito ou às visões de mundo pós-iluminismo – que moldaram as noções modernas de “Constituição” e “Direitos humanos” –; a leitura desse mestre (com o perdão do trocadilho!) é um norte que, no início da faculdade, teria me poupado de muitas dúvidas com relação à natureza das ciências jurídicas. Imagino que a mesma angústia se estenda aos estudantes de filosofia, história ou algum curso envolvendo as artes literárias; estudantes que, como eu quando mais jovem, ousem questionar instintivamente os cânones do mundo moderno.
Patrono da escola de pensamento conhecida como “Jusnaturalismo Teológico”, hoje minoritária em um meio acadêmico acostumado a propagandear que o direito, como ciência, começou a partir do constitucionalismo e das revoluções liberais ao final do século XVIII, a visão do conde sobre os direitos sendo confirmações de fatos que já existem, e só são escritos quando se encontram ameaçados, parece explicar melhor a nossa realidade objetiva – aonde, muitas vezes, há um descompasso entre a lei escrita de forma à priori, o que se observa na prática e o que é decidido por juízes – que as longas meditações dos professores de Direito Constitucional. Revestidas com um ar quase romântico (mas nada épico!) de epopeia, eles anunciam, como arautos do porvir, a marcha triunfante do ativismo judicial que vêm sendo flagrantemente praticado nos tribunais superiores das nações globais, especialmente no Brasil, nos Estados Unidos do século XX ou na Alemanha pós Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, é com a autoridade intelectual de um juiz experiente, feito senador e conde por seus próprios méritos, que assim escreveu o aristocrata em suas magnânimas “Considerações sobre a França” (6 Considérations sur la France, no original), publicadas em 1796:
“1º Nenhuma constituição é resultado de uma deliberação. Os direitos dos povos jamais são escritos, ou, ao menos, os atos constitutivos ou as leis fundamentais escritas não passam de títulos declaratórios de direitos prévios, dos quais não se pode dizer outra coisa senão que existem porque ali estão. ( Pag 260, Edição da Livraria Resistência Cultural)”
“7º Nenhuma nação pode atribuir-se uma liberdade se ela já não a possui. Quando começa a refletir sobre si mesma, suas leis já estão prontas. A influência humana não vai além do desenvolvimento dos direitos existentes, mas que eram ignorados ou contestados. Se, por meio de reformas temerárias, alguns imprudentes ultrapassam esses limites, a nação perde o que tinha sem alcançar aquilo que desejava.” (Pag. 263)
Sob essa visão, portanto, os direitos não poderiam ser prescrições alienígenas à moral, às tradições e aos costumes de um povo; sob pena de serem vistos como carentes de legitimidade e, portanto, nulos. Ao invés de falar em “Direitos Humanos” ou “Direitos do Homem” como o fazem histericamente alguns professores e governantes em nossa era contemporânea, tratando a humanidade espalhada pelos quatro cantos do globo como uma raça puramente homogênea, é muito mais justo (e lógico!) – na definição clássica e distributiva apresentada por Aristóteles em sua Ética (7 Ética a Nicômaco, livro V) – falarmos em “Direitos dos brasileiros”, “Direitos dos argelinos”, “Direitos dos espanhóis”, “Direitos dos indianos” ou “Direitos dos canadenses”, conservando o tratamento proporcional aos desiguais na medida de sua desigualdade natural.
Dessarte nada adianta, trazendo dois debates comuns à realidade hodierna, um advogado militante encher a boca para comemorar que “O tribunal superior X reconheceu o ‘casamento’ entre pessoas do mesmo sexo!” ou “O tribunal superior Y entendeu que a interrupção da gravidez em até vinte semanas não configura homicídio culposo” com a mesma empolgação de um devoto fiel ao ver o Papa se pronunciar na Cátedra de São Pedro, cujo amparo espiritual dado por uma instituição de origem Divina o torna infalível em matéria de Fé. Se os fenômenos citados não forem fatos socialmente aceitos (ou no caso, aceitáveis!), tampouco serão direitos legítimos, independente do que disserem as autoridades constituídas pelo poder temporal. Felizmente – ao menos por enquanto – as constituições em vigor, majoritariamente de origem humana e secular, não inventaram o princípio da “infalibilidade jurisdicional”.
Em outras instruções nesse mesmo capítulo – cujo tema é “a Influência Divina nas Constituições Políticas” – percebe-se, ainda, uma cristalina oposição do conde de Maistre à verborragia excessiva nos textos legais, tão enaltecida por alguns mestres que compõem a academia. Com o perdão pela quebra da ordem em que foram propostas, assim as apresento:
“5º Ainda que as leis escritas nunca passem de declarações de direitos anteriores, as mesmas, entretanto, estão longe de prescrever todas as situações. Com efeito, toda constituição conterá algo que não pode ser escrito e que deve ser deixado sob uma nuvem espessa e venerável, sob pena de arruinar o Estado. (Pags 261-262)”
“6º Quanto mais se escreve, mais a instituição será frágil, e a razão para isto é clara: as leis não passam de declarações de direitos, que são declarados somente quando estão sob ataque. Assim, a multiplicidade das leis constitucionais escritas só prova a multiplicidade dos ataques e o risco de uma destruição [...]. (Pags 262-263)”
Me pergunto, honestamente, quantos aspirantes à carreira jurídica não ficariam maravilhados com os textos do conde saboiano – graves e sublimes como as notas de um órgão, conforme já foi dito – caso apresentados a seu nome nas velhas aulas de Filosofia do Direito, aonde o pensamento jusnaturalista de base teológica é visitado com a brevidade de uma siesta após o almoço, igual às aulas sobre Platão no Ensino Médio (resumidas à Alegoria da Caverna!). Talvez até os mais progressistas se veriam a concordar com o realismo latente nas suas máximas e aforismos, até saberem estar diante de um filósofo que, em sua época, era considerado um inquisidor, suprassumo do reacionarismo e apologeta do “Antigo Regime”.
Sim! Tais aspirantes poderiam até mesmo (pasmem!) correr o risco de questionar esse positivismo frio e mecânico que impera na academia, e atribui validade automática aos atos de pretensos juízes ou deputados, simplesmente porque foram nomeados e/ou eleitos. Quando dessem por si de quantas nulidades – sob a ótica implacável da Lei Natural, que sempre prevalece na provação do tempo – são cometidas por tais magistrados, invariavelmente concordariam com a afirmação do conde que: “as obras humanas são frágeis em proporção ao número de homens que dela participam, e ao aparato científico e reflexivo que nelas se empregam de modo à priori” (8 Considérations sur la France, p. 277, editora Resistência cultural), ou ainda: “O momento permite nos dizer que a experiência se esgotou, pois só a falta de atenção leva alguém a dizer que a constituição francesa vigora: confunde-se a constituição com o governo” (9 Considérations sur la France, p. 278, editora Resistência cultural.) . Interessante notar os paralelos que podem ser feitos com a realidade política e jurídica da França de 1789 a 1804 com o Brasil atual, guardando a justa reserva das devidas proporções.
Sempre que as notícias a surgir pelo google me inspirarem raiva da magistratura como classe profissional, sempre que decisões injustas de juízes imprudentes reconhecerem a existência de direitos puramente idealizados – que claramente afrontem as leis naturais – e me levarem a odiar o próprio poder judiciário, sempre que o ativismo judicial aparentar suprimir os outros poderes constituídos (não necessariamente dois!), como vejo que vem ocorrendo na Europa ultimamente, eu recordarei com regozijo o exemplo de Joseph de Maistre. Imaginar a existência de magistrados que tenham o mesmo perfil ético e cauteloso nos levará, inevitavelmente, a concluir que a aparente desordem entre leis, tribunais e sentenças não é um problema que reside no direito em si, mas um fenômeno que reflete a forma como o ensinam nas faculdades e estágios: uma ferramenta para revoluções em âmbito material e/ou moral, e não uma necessidade civilizatória inerente à formação das sociedades, conforme preconiza a velha máxima romana “Ubi societas, ibi jus” (10 Aonde há sociedade, há direito. *Nota do autor).

Afinal, nem toda autoridade “constituída” é, necessariamente, legítima. O ofício de legislador constituinte não se aprende em um piscar de olhos, como dormir ou comer. Elaborar leis é um trabalho de constante refinamento por tentativa e erro, razão pela qual os grandes estadistas não elaboraram constituições movidos pelo calor de uma tensão política momentânea. É um processo semelhante ao de cozinhar um bom prato ou escrever belos poemas. Não foi do dia para a noite, na flor dos vinte e poucos anos ou a pedido de alguém com pressa que Dante escreveu a Divina Comédia; tampouco ela é a mais sublime das epopeias porque, em algum dia nos idos do ano “1XXX”, uma “maioria iluminada” assim a elegeu – maioria que amanhã, pela lógica revolucionária, poderia consagrar o louro de “sumo poeta” a algum modernista raso e vulgar, como Charles Bukowski ou Pablo Neruda.
Pelo contrário: a experiência como artista moldou Dante para escrever sua Magnum Opus, e a Divina Providência, agente supremo da humanidade constantemente trazida à tona pelo conde, permitiu que a história o aclamasse.
“Seria a lei suprema vulnerada
Se ora passasse o Letes e provasse
Desta água aqui, antes de ter lavada
À lágrima contrita a sua face”
(11Dante Alighieri, A Divina Comédia, Purgatório, Canto XXX, 142-145, Editora Garnier.)
III – A dimensão espiritual das leis e da política
Conforme os anos se passavam e a experiência se acumulava: incluindo a visão das guerras lideradas por Napoleão, que criariam um mundo diferente daquele que conheceu, de Maistre se aprofundou nas supracitadas convicções que moldaram sua filosofia jurídica. Assim, não recuando em uma única linha do que havia escrito, retomou os axiomas propostos nas “Considerações” em obras posteriores: suas cartas trocadas com confrades na aristocracia e o polêmico “Ensaio sobre o Princípio Gerador das constituições políticas e de outras instituições humanas” (12 Essai sur le principe générateur des constitutions politiques et des autres institutions humaines) – texto esse no qual, buscando aprofundá-los, usou de uma sensibilidade metafísica para compreender a política, que não deve jamais se confundir com paganismo ou gnose. Dessa forma, descreveu como a Providência é o verdadeiro motor inigualável do mundo físico e da história, face ao qual os homens são meros instrumentos. A própria Revolução Francesa, na percepção do autor, seria um castigo de Deus às iniquidades da França contra a Santa Mãe Igreja, cometidas desde os tempos do infame rei Felipe IV e o papado cativo que estabeleceu em Avignon (1309-1377).
Dando um especial destaque à sua carta dirigida a monsieur le Chevallier em agosto de 1811, no âmbito das guerras napoleônicas – cujo corpo de texto contém a máxima “Toda nação tem o governo que merece”, a qual o consagrou à posteridade e tornou-se até maior que o próprio conde – estão escritas algumas conclusões que, pela simplicidade do texto, ousarei traduzir:
“1º Não há nada tão verdadeiro quanto essa máxima da jurisprudência romana: expressa nocent, non expressa non nocent (13 As coisas expressas prejudicam, as não expressas não.). Tem uma grande quantidade de coisas verdadeiras e justas, e que ainda assim não devem pois ser ditas, e ainda menos escritas. Gostaria de um exemplo nas coisas pequenas? Se me perguntarem “um pai de família tem o direito de abrir as cartas de seu filho?”, eu responderia “sem dúvida”, e acreditaria ferir a autoridade paterna se respondesse de outra forma. Mas se você me perguntar in concreto, como dizemos na escola, “Me aconselha abrir essa carta do meu filho que me é suspeita?”, eu vos responderia “Pai, se resguarde, pois você tem bastante a perder e muito pouco ou nada a ganhar [...] (Lettres et opuscules, pag 263)”
“2º Toda nação tem o governo que merece. Longas reflexões, e uma longa experiência muito custosa, têm me convencido dessa verdade como de uma proposição matemática. Toda lei é então inútil, e mesmo funesta (por mais excelente que pode ser em si mesma) se a nação não é digna da lei e feita para a lei” (Lettres et opuscules, pag 264)”
3º Mas, passando por todas essas dificuldades, resta uma que é a maior de todas, e que retorna um pouco à precedente. Suponhamos essas leis também excelentes que vamos querer, onde está a sanção? E quem impedirá um outro príncipe, ou o próprio, de estabelecer todo o contrário? Paulo I (14 Czar da Rússia entre 1796 e 1801) não estabeleceu a lei sálica da maneira mais solene do mundo? No dia seguinte, seu filho a revogou. Eu fui conduzido, por minhas reflexões sobre esse assunto interessante, à descoberta, que creio incontestável, que nenhuma lei verdadeiramente fundamental e constitucional pode estar escrita, e se está escrita, ela é nula. Você talvez tomaria isso por um paradoxo, monsieur le Chevallier; é, no entanto, uma verdade, e eu a sustentei, em um escrito ad hoc, com tantas provas lógicas e históricas, que eu me convenci inteiramente[...]” (Lettres et opuscules, pags. 265-266)
A sacada do conde nessa epístola é uma autêntica demonstração de sua Fé profundamente católica (ou cristã, para os amigos protestantes!) e de uma sensibilidade intelectiva que percebe as coisas visíveis e também as invisíveis, conforme pregam as Escrituras. (15 Hb 11,3) Nenhuma lei formal além da boa e velha prudência nos obriga a obedecer a nossos pais após atingida a maioridade ou a independência financeira; no entanto, o fazemos, em respeito à sua experiência de vida e a uma autoridade natural e perene que emana da instituição familiar, cuja origem é datada de épocas além da nossa imaginação e arqueologia. Da mesma forma, nada além do próprio senso de justiça – outra virtude cardeal pouco praticada nos dias atuais – os obriga a não invadir nossa privacidade enquanto vivemos sob sua proteção; ainda assim, eles não o fazem. Essa breve apologia ao senso comum, feita por um autor nada comum, termina por carregar um tom aristocrático que não encontramos, por exemplo, nos bem humorados G.K Chesterton e C.S Lewis, também ardentes defensores da Lei Natural.

Sendo paradoxalmente uma ideia de senso comum, foi o aspecto metafísico nos antigos reinos erguidos no auge da Cristandade (ou mesmo civilizações ainda pagãs, como a Pérsia e a China!), aonde a obediência às leis era pautada na Fé e na noção de uma ordem invisível, inteligível, aonde residiam o certo e o errado – e não em ideias abstratas e relativizáveis como “liberdade, igualdade, fraternidade”, ou em constituições que as plasmavam em comandos ambíguos e apriorísticos – que os garantiu serem longevos. Tal princípio não se aplica a boa parte dos estados contemporâneos, cuja inconsistência moral faz parecer estarem sustentados apenas pelos juros nos bancos e pela boa vontade dos militares. Se há uma verdade sobre a política que a história já provou, é que esta é uma ciência que deve ser prolixa nos tratados, e concisa na legislação. Partindo disso, questiono: quantas regras diferentes não devem existir dentro de cada casa e família, capazes de superar todas as constituições já feitas, em todos os países que existem ou existiram nos últimos duzentos anos? Somos mais propensos a valorizar o que manda o artigo 5º da “Carta magna” de 1988, ou as ordens da vovó, que nasceu muito antes dela ser escrita?
Pois essa perspectiva, da qual só apresentei alguns pequenos grãos – pouco palatável aos gostos de um mundo que, há quase três séculos, se habituou às codificações como eu me habituei a tomar chá verde –, destaca que as autênticas leis constitucionais e o verdadeiro direito: aquele capaz de nos obrigar no foro da consciência, conforme ensinou São Tomás de Aquino (16 Suma Teológica, Vol II – La Llae – Tratado da Lei, Questão 96: do poder da lei humana, arts. 3 e 4.), é muito mais sentido que escrito em papéis ou tábuas de lei; afinal, está inscrito em nosso interior, com a função de ordenar os atos à virtude e ao bem comum.
As prescrições de uma lei justa ressoam pela mente símiles às notas de um Salmo responsorial na missa da manhã, e não exigem qualquer coação, pois conseguem nos inspirar a segui-las espontaneamente. Duque, 2024
コメント