Henri Lefebvre e a Revolução Urbana
- Jefferson Santos
- 7 de jun. de 2023
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Por Jefferson Santos

Esse é um autor polêmico com uma teoria polêmica. E ele não é um católico, mas sua teoria é muito importante. Peço que sejam pacientes e prestem bem atenção em minhas palavras. Não quero ter que lidar com más interpretações.
Ele foi um sociólogo nascido no início do século XX, Henri Lefebvre é uma figura cujos escritos lançam luz sobre questões relacionadas à vida rural versus vida urbana, teorias do estado, modernidade e o papel do espaço social e dos mercados nas cidades. Além da sociologia, ele é considerado uma figura importante tanto nos estudos urbanos quanto na teoria crítica neo-marxista. A contribuição de Lefebvre para os estudos urbanos e sua relação com a teoria crítica merecem atenção, apesar da conotação negativa inicial que a teoria crítica ou qualquer campo terminado com a palavra "estudos" possa transmitir. Seus escritos levantam preocupações razoáveis, acredito, e observações realistas sobre a vida moderna que perplexam tanto conservadores-tupiniquins/liberais quanto pensadores marxistas hoje em dia, pelas formas como a vida urbana está afetando a noção de cidade e de sociedade.
I. Origens Intelectuais
Acredito que a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa marcaram uma mudança significativa para Lefebvre; uma delas é que ela o tornou um pensador mais político. Ele nasceu na França e foi influenciado por filósofos radicais, comunistas e vanguardistas, e era versado nos escritos de Marx, Nietzsche, Heidegger e Hegel.[1] Lefebvre destacou como seu "pensamento dialético" se refere principalmente ao tempo.[2] Sua contribuição única para sua leitura desses pensadores populares foi reinterpretar seus escritos filosóficos e políticos no âmbito do espaço. A relação espacial substituiria o tempo como um meio melhor para interpretar o capitalismo moderno.
O famoso livro de Lefebvre, Le Droit à la Ville (O direito à cidade) (1968), argumentava por um "direito humano à cidade" em que as autoridades locais recuperam a cidade como um espaço co-criado que está desvinculado dos crescentes efeitos que a mercantilização e o capitalismo tiveram sobre a interação social. Também visava corrigir, por meio do planejamento urbano, as desigualdades espaciais nas cidades. O livro seguinte de Lefebvre, A Revolução Urbana (1970), marcou um novo capítulo na teoria crítica ao colocar "o urbano" no centro da crítica política.[3] Nesse texto eu vou falar sobre os principais pontos de A Revolução Urbana.
A Revolução Urbana começa com a hipótese de que a sociedade se tornou completamente urbanizada. Na época em que Lefebvre estava escrevendo sua obra, o urbanismo era objeto de críticas tanto da esquerda quanto da direita. "A crítica da direita", escreveu ele, "está focada no passado e é frequentemente humanista" e "subscreve e justifica uma ideologia liberal de 'livre iniciativa', direta ou indiretamente".[4] Lefebvre via a crítica de direita ao urbanismo de sua época como aquela que priorizava o crescimento do mercado em nome da liberdade econômica.
"A crítica da esquerda", por outro lado, era "frequentemente negligenciada" e tentava "abrir um caminho para o possível, explorar e delinear uma paisagem que não é apenas parte do 'real'".[5] Lefebvre interpretava a crítica de esquerda ao urbanismo como uma forma de crítica útil destinada a melhorar uma ideia nobre. Lefebvre também descrevia a crítica da esquerda como uma crítica "utópica" porque ela se afastava "do real sem, no entanto, perdê-lo de vista".[6] Um elemento interessante sobre os escritos de Lefebvre é como ele trata a compreensão liberal da modernidade e sua correlata urbanização, pois ele acreditava que a compreensão liberal da falha da urbanização era simplesmente não ser suficientemente perfeita. Lefebvre considerava o mundo que criamos e o mundo que imaginamos como duas formas de realidade, na verdade, e escrevia sobre a comparação "do real e do possível", como se o possível "também fosse realidade".[7]
A partir dessa observação inicial, é possível deduzir que a preocupação de Lefebvre com a crítica de direita à urbanização era seu foco e priorização do mercado, enquanto sua preocupação com a crítica de esquerda era mais filosófica. Esse ponto fica mais claro à medida que o livro avança. A introdução de A Revolução Urbana diz: "somente quando pausamos para refletir sobre o fechamento radical do espaço representado pelas visões de globalização dos capitalistas financeiros contemporâneos, ou pelas paródias de esquerda do mesmo, é que o gênio da insistência espacial de Lefebvre se torna claro".[8] No entanto, Lefebvre dificilmente via utilidade em enxergar o mundo moderno como preto e branco entre direita e esquerda.[9]
Lefebvre era membro do Partido Comunista, mas tinha uma relação cada vez mais complicada com eles. Após o discurso de Nikita Khrushchev em 1956, "Sobre o Culto à Personalidade e suas Consequências", revelar a verdade sobre o regime autoritário de Stalin e toda a violência que ele infligiu, Lefebvre ficou desencantado com o partido. Depois de tentar formar um partido alternativo na França, ele foi expulso do Partido Comunista em 1958.[10] Nesse contexto, A Revolução Urbana se revela como uma resposta contra a forma de comunismo que trata tudo nessa dicotomia entre capitalismo e socialismo, pois as coisas são muito mais interconectadas e complicadas do que isso.
II. Teorias Urbanas e a "Crítica da Vida Cotidiana"
Após sua expulsão do Partido Comunista, Lefebvre dedicou-se a desenvolver suas próprias teorias, sem nunca renegar completamente suas simpatias marxistas. Ele foi pioneiro no que é conhecido na sociologia como "crítica da vida cotidiana", cuja justificativa é baseada em uma combinação de mudanças sociais e observações sobre a modernidade. Explorar esses dois elementos é um empreendimento valioso para os céticos da sociologia (especialmente da sociologia francesa), pois nos fornece o embasamento analítico para compreender como um teórico crítico e neo-marxista interpretou o curso do desenvolvimento urbano.
Para Lefebvre, a crítica da vida cotidiana não era "meramente um detalhe da sociologia", pois não tinha um domínio claramente circunscrito.[11] Como seria de se esperar de um pensador marxista, a crítica da vida cotidiana incorpora críticas econômicas, mas Lefebvre também incorporou várias outras áreas em sua teoria, já que era intelectualmente contrário à forma de especialização disciplinar que impedia que os campos conversassem entre si e interpretassem o mundo vivido como a pessoa comum o percebe: como uma unidade completa, não subdividida por categorias específicas de campo.
A crítica da vida cotidiana argumenta que nossas experiências contemporâneas no mundo constituem uma "cotidianidade" que começou com a era industrial.[12] Essa cotidianidade é "um ambiente social de exploração sofisticada e passividade cuidadosamente controlada" que surge não apenas das características de um ambiente urbano, mas das implicações desse ambiente urbano, que segregam "momentos da vida e atividades".[13] O ambiente urbano estava cada vez mais dividindo os espaços nas cidades onde as pessoas podem viver e os lugares que são estritamente funcionais. O capitalismo rebaixou a cidade, mais especificamente a vida urbana, a uma mercadoria que apenas certas pessoas poderiam desfrutar.
A função repetitiva, burocrática e exploradora da vida cotidiana, afirmou Lefebvre, não é um acidente do desenvolvimento industrial e econômico. Portanto, era necessário encontrar uma nova abordagem crítica que considerasse "objetos e sujeitos, setores e domínios" e demonstrasse como as pessoas vivem na tentativa de revelar como "a crítica da vida cotidiana constrói uma acusação das estratégias" que levam a atividades segregadas dentro da cidade.[14]
Essa interpretação e crítica da vida urbana demonstram as influências marxistas de Lefebvre, e podemos facilmente identificar a falha no próprio pensamento de Lefebvre ao representar as falhas da experiência cotidiana como um plano sinistro criado por empresas, em vez de considerá-las como um fenômeno evoluído com problemas crescentes para os quais é complicado encontrar um culpado direto. Sua teoria presume que alguém é responsável pela ordem e perspectiva atuais de nossa sociedade. Em certo sentido, o valor de sua teoria está em tentar inculcar uma hiperconsciência do ambiente, da vida e do próprio indivíduo, permitindo que as pessoas vejam criticamente o mundo que criaram. Ele considerava a crítica da vida cotidiana como algo contínuo, "às vezes espontaneamente autocrítica, às vezes formulada conceitualmente", que coloca o pensamento e a análise (teoricamente) nas mãos do cidadão individual, não de um planejador central, político ou burocrata.[15]
III. Historiografia da Cidade de Lefebvre
Uma "revolução urbana" sinalizou uma mudança histórica do agrário para o industrial, mas também dizia respeito à transição da cidade política para a cidade industrial - da polis para um sistema funcional de atividades econômicas. Lefebvre narra que a cidade política era "povoada principalmente por sacerdotes, guerreiros, príncipes, nobres e líderes militares" e que era "inconcebível sem escrita: documentos, leis, inventários, cobrança de impostos" porque era governada por ordens e decretos.[16] É verdade que a cidade política continha uma classe trabalhadora, como sempre ocorreu, mas Lefebvre argumentou que nesse contexto, camponeses e comunidades mantinham uma "posse efetiva através do pagamento de tributos".[17] Isso mudou com a evolução da cidade política.
Lefebvre recorreu ao exemplo de Atenas, uma cidade política, e sua coexistência com Pireu, uma cidade comercial, para demonstrar que historicamente sempre houve uma distinção entre a cidade política e a cidade comercial. Ele escreveu:
Quando Cristo expulsou os comerciantes do templo, a proibição foi semelhante, teve o mesmo significado. Na China e no Japão, os comerciantes foram por anos uma classe baixa urbana, relegada a uma parte "especial" (heterotópica) da cidade. Na verdade, foi somente no Ocidente europeu, no final da Idade Média, que a mercadoria, o mercado e os comerciantes foram capazes de penetrar com sucesso na cidade.[18]
A forma como Lefebvre relata os eventos da história demonstra suas influências marxistas evidentes, mas sua historiografia crítica começa depois que o mercantilismo se integrou à vida urbana. Uma vez que os comerciantes entraram permanentemente na cidade, começou uma luta de classes que foi uma "luta prodigiosamente fecunda no Ocidente, que ajudou a criar não apenas uma história, mas a própria história, o mercado se tornou centralizado".[19] À medida que essa mudança ocorria, o mercado "substituiu e suplantou", nas palavras de Lefebvre, o local tradicional de reunião que era a ágora ou o fórum. A interpretação de Lefebvre dessa mudança, além disso, é uma observação espacial: ele critica o espaço físico que o mercado passou a ocupar nas praças das cidades. A mera presença de um novo espaço de mercado no centro das cidades era significativa para a mente dos cidadãos, pois "a arquitetura acompanha e traduz a nova concepção da cidade" uma vez que os mercados ocuparam um lugar ao lado da igreja da praça principal e da prefeitura - uma prefeitura que se tornou cada vez mais ocupada por uma oligarquia mercantil, acrescentou ele.[20]
IV. As Três Ilusões da História
O historiador da economia e do desenvolvimento econômico frequentemente equipara o surgimento dos mercados com o aumento da riqueza e o incremento da liberdade. Lefebvre chamou isso de uma "liberdade conquistada", uma "luta grandiosa, mas sem esperança".[21] A interpretação do surgimento do mercado é onde suas observações podem diferir. Ainda assim, sua preocupação com os problemas da vida moderna na cidade contém elementos de verdade. A cidade política mudou de tal forma que não apenas alterou o espaço físico, mas também afetou a compreensão conceitual do que uma cidade é destinada a ser. A cidade política surgiu de uma ilusão filosófica, segundo Lefebvre, que levou os arquitetos da cidade política - os filósofos - a acreditar incorretamente que seu sistema era a única opção possível para a organização da cidade. A falha dos filósofos, acrescenta Lefebvre, é que eles acreditam que suas ideias são as únicas corretas, daí a "ilusão". Mas "sempre há mais no mundo do que qualquer sistema filosófico", lamentou ele.[22]
Embora ele tenha culpado a queda da cidade política na ingenuidade intelectual (ou arrogância intelectual) do filósofo, Lefebvre não era um crítico da filosofia; na verdade, ele a admirava. Ele escreveu: "por anos [a filosofia] rivalizou com a arte, possuindo algo do caráter incomparável de uma obra: algo único, infinitamente precioso, insubstituível".[23] No entanto, Lefebvre era um realista que reconhecia que o lugar da filosofia na vida pública é instável, no melhor dos casos. Ele perguntou: "não é uma ilusão, então, continuar indefinidamente construindo sistemas que são sempre decepcionantes, sempre aprimorados?"[24] Implementar a filosofia nas questões práticas e políticas da vida cotidiana trouxe a filosofia para baixo de seu lugar ao lado da arte. Por esse motivo, Lefebvre acreditava que "a partir do momento em que a ideia da perfectibilidade indefinida da sistematização entra em conflito com a ideia da perfeição imanente do sistema como tal, a ilusão filosófica entra na consciência".[25] Um ponto interessante na observação de Lefebvre é como ele considerou a ideia de perfectibilidade na filosofia como algo incompatível com a ideia de sua perfeição "imanente". Claro, como cristãos, sabemos que nada em nosso mundo, especialmente a filosofia, possui perfeição imanente.
A perspicaz crítica de Lefebvre à cidade demonstra a estagnação intelectual em que o pensador marxista - isto é, ateu - chega: o homem é grandioso, mas não é bom o suficiente. O homem pode realizar qualquer coisa; ele pode arruinar tudo. O fracasso, ou desencanto, da filosofia levou ao próximo equívoco intelectual que Lefebvre chamou de "a ilusão do Estado". Aqui, a descrição de Lefebvre da ilusão do Estado pode rivalizar com os escritos dos críticos mais fervorosos da centralização. Ele escreveu: "o Estado é capaz de gerenciar os assuntos de dezenas de milhões de súditos. Ele gostaria de direcionar nossa consciência como se fosse uma espécie de administrador de alto nível. Providencial, uma divindade personificada, o Estado se tornaria o centro das coisas e dos seres conscientes na terra".[26] Lefebvre acreditava que a ideia de Estado estava intrinsecamente voltada para o controle, embora apenas "reconhecido em segredo".[27] Essa formulação não implica que a política tenha sucedido a filosofia cronologicamente, pois as duas sempre coexistiram, mas que a política se tornou mais influente.
Inicialmente, uma visão do Estado como uma organização de controle total não tinha probabilidade de ter sucesso, mas acabou se revelando que o Estado conseguiu usurpar, por assim dizer, o lugar ocupado pela filosofia em como governava a vida dos homens. A mais nova ilusão na cronologia de Lefebvre era a urbana. Lefebvre a comparou à filosofia clássica na maneira como afirmava ser um sistema: "Ela quer ser a filosofia moderna da cidade, justificada pelo humanismo (liberal) enquanto justifica uma utopia (tecnocrática)".[28] Assim, a crítica de Lefebvre à revolução urbana retorna ao ponto de partida. Sua falha é ser uma falsa filosofia justificada por princípios humanistas e liberais de liberdade, agindo de forma contraproducente a essas ideias por meio da elevação do mercado, que reprime a vida de seus próprios cidadãos por meio de uma realidade tecnocrática e burocrática que negligencia as vidas das pessoas.
O que um católico pode ganhar ao ler as teorias urbanas de Lefebvre? Em primeiro lugar, elas demonstram a frustração com a contínua erosão da vida do cidadão na cidade. Além disso, levantam questões importantes em relação ao crescimento da urbanização; não se pode deixar de concordar com sua previsão de que a urbanização está se tornando cada vez mais abrangente em nossas sociedades. Embora os alvos fáceis e comuns dessa realidade tenham sido sempre as empresas, tecnocratas e burocratas, de acordo com os pensadores marxistas, é útil para os defensores do livre mercado reconhecerem os efeitos muito reais que as cidades estão causando nos cidadãos. Como consertar isso? A popularidade do "novo urbanismo", defendido por pensadores como Roger Scruton, contém ideias promissoras que visam equilibrar uma cidade habitável para os habitantes com uma cidade funcional para a atividade econômica, mas isso reconceitualiza o papel do mercado na cidade. Se não é a resposta, pelo menos é um bom ponto de partida do "outro" lado para começar a pensar sobre esses problemas e suas implicações, e isso pode ser encontrado nos escritos de Lefebvre. Ele é um dos pensadores mais objetivos na teoria crítica; seu marxismo raramente é imune a uma análise crítica.
Notas:
Eu mesmo traduzi os trechos que retirei do livro. Usei a edição da Minneapolis, que está em inglês. Vou deixar aqui os links:
Edição da Minneapolis: LINK
Edição em Português: LINK
[1] A Revolução Urbana, p. viii.
[2] Ibid. p. ix.
[3] Ibid. p. vii.
[4] Ibid. p. 6.
[5] A Revolução Urbana, p. 6.
[6] Ibid. p. 6-7.
[7] Ibid. p. 139-40.
[8] Ibid. p. viii.
[9] Ibid. p. xi.
[10] Ibid.
[11] Ibid. p. 139.
[12] ibid. p. 139.
[13] Ibid.
[14] Ibid. pp. 139-40.
[15] Ibid. p. 140.
[16] Ibid. 8-9.
[17] Ibid.
[18] A Revolução Urbana, p. 9.
[19] Ibid. p. 10.
[20] Ibid.
[21] Ibid.
[22] Ibid. p. 153.
[23] Ibid.
[24] A Revolução Urbana, p. 153.
[25] Ibid.
[26] Ibid.
[27] Ibid.
[28] Ibid.
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